sábado, 15 de fevereiro de 2014

Artigo 282


Quem tem filho pequeno sabe que uma mísera tomada pode virar uma ameaça tão letal quanto um tiroteio.
O chão ensaboado é o vilão da vez. Um arroubo de preciosismo com a limpeza e lá está a criança caída no chão da cozinha. Detalhe: com 40% de dois dentes da frente quebrados. Choro, sangue, lágrimas, danação eterna e construção de um inferno infantil onde um adulto menos hábil não consegue adentrar.
17h 30min de uma quarta-feira: o dentista que costuma acompanhar a criança já está em um happy hour ou no caminho de casa. O que fazer?
A primeira ideia que surge é de contatar um consultório odontológico 24 horas.
- Boa noite. Vocês atendem crianças? 
-Pode trazer a criança, senhor. Atendemos sim.
- Ok.
E por conta da apreensão de um pai no limite de sua preocupação, o táxi e seu motorista teriam que se transmutar em um avião. Coitado. Transformou seu carro no melhor caça que pôde. E voou.
Chegamos ao consultório e descobrimos que só as recepcionistas estavam contidas no esquema de 24 horas que o letreiro informava. Não havia dentistas por lá. Só havia boa vontade. 
-Senhor, eu vou tentar dar um jeito para a sua menina. 
(E tome mais choros da criança com a impossibilidade de ter seu problema sanado)
- Dra. Patricia? Oi, tudo bem? Estou aqui com uma menininha de 8 anos. Ela quebrou os dois dentes da frente. O quê? A senhora não atende crianças? Hã? É só protesista, não se sente à vontade para avaliar a situação? Ok, obrigado. 
(E tome mais rasgados choros infantis. A essa altura, pensava que minha filha chorava por conta da incompetência alheia)
Desolada, a recepcionista desligou o telefone. De repente, teve uma luz. Seu rosto se iluminou com tal potência que já podíamos ver os dentes de minha filha restaurados.
-Conheço uma amiga de uma amiga da amiga da  Dra.Tânia Mara. Ela costuma atender emergências.
Isso não podia dar muito certo. Murchei igual a uma balão quando ela concluiu a sentença. Só que não havia mais fuga. Era pegar ou largar.
-Sim. Dra.Tânia? Aquela sua amiga ainda atende emergência? Atende? Oba. A sra. me passa o telefone dela? (Recita o telefone) Huuum, Dra.Petra. Muito obrigada. Boa noite.
A recepcionista pega o telefone e faz uma nova investida. 
- Dra.Petra? Estou com uma criança de 8 anos aqui. Ela quebrou os dentes da frente. A senhora pode dar uma olhada nela ainda hoje? Não? A senhora só pode passar um remedinho para aliviar a dor? Se o pai e a criança podem esperar? Pode ser que coloque no encaixe da tarde amanhã?  A senhora liga em uns dez minutos? Ok.
Ela se vira para mim e abre os braços, impaciente com o entrevero.
-Se o senhor aguardar mais dez minutos, eu posso tentar uma solução.
Ao fim do vigésimo minuto, o telefone toca novamente. Quase corremos os três para atender a chamada. 
(Mais conversa entre a extenuada recepcionista e a hipotética dentista)
-Sr., ela passou o número de uma outra dentista. Falou com essa colega e ela disse que ela atende casos emergenciais. Só que o sr. e sua filha terão que deslocar uns 5 km. É só o sr. ligar para confirmar o horário das 20h.
Olhei para o relógio. Ele marcava 19h15min. Eu tinha a intuição de que isso custaria muito mais que qualquer dinheiro.
Como estava previamente acordado, liguei e a dentista me pediu para ir a um local informado. Ela ainda estava em casa. Disse que encontraria conosco no horário combinado.
Conseguimos chegar no horário. A dentista ainda não havia chegado. Ela só chegaria uns cinco minutos mais tarde.
Chegou. Falou da neta, do filho, do cachorro de raça e, por fim, do marido. Dissertou sobre o calor intenso no país, a queda do dólar, o mosaico feito pela torcida do Botafogo, a falta de perspectiva de chuva. Nada sobre nenhum dos 32 dentes contidos em uma arcada dentária humana. Nenhum canino ou molar mereceu uma menção honrosa naquela introdução ao seu serviço. 
-O que os traz aqui hoje?
Quase respondi que meu objetivo era fazer hora, passar o tempo. Minha presença ali se dava apenas para ouvir o que ela tinha a dizer.
-Ela caiu e quebrou os dois dentes da frente. - disse de forma objetiva, seco.
-Vamos deitar na cadeirinha, baixinha bonitinha?
Esperando por algo que a fizesse se sentir melhor, minha filha deitou-se docilmente no espaço oferecido. 
-Huuum. Achava que conseguiria reparar pelo menos um dos dentes hoje. Não vai dar para fazer nada definitivo agora.
- Não dará nem para fazer um paliativo? 
- Ah, sim. Posso colocar uma placa para buscar restaurar a firmeza dos dentes.
Ela ajuntou uma maçaroca e arremessou na boca da criança. Ao fim da operação, minha filha parecia um desses boxeurs veteranos com equipamento bucal inadequado. 
-Ei, mocinha, não pode cuspir aí. Desculpe. Não temos água.
-Ela pode cuspir no banheiro?
-Se nós tivéssemos um banheiro, ela poderia. Usamos o banheiro da portaria do prédio. 
-A senhora teria um papel, um guardanapo?
-Perdão. Usei o último guardanapo para anotar o orçamento para um cliente. 
Atônito, não tive coragem de falar mais nada. Tinha medo do que ainda poderia vir.
- Dra., quanto custará o trabalho de hoje?
-Fiz esse procedimento nos dentes e pretendo retomar no sábado. Sendo assim, o serviço desses dois próximos dias fica por R$ 300,00. Só de um dente, ok? O outro vai receber um clareamento, uma reconstituição quase total e um canal. Vai custar bem mais. Todo o serviço fica por R$ 1000,00. E olhe que estou sendo bem barateira. O senhor gastaria bem mais no primeiro lugar onde foi.
Ainda petrificado pelo olhar de Medusa, saquei trezentos reais e os entreguei, sem pena ou remorso, nas garras da profissional. A mão tremia quando agarrou as notas. Avaliei que se eu não estivesse presente ela iria cheirar as notas e esfregar nervosamente no rosto. Parecia em abstinência de moeda corrente. 
Ela deu o valor final sem tirar nenhuma radiografia do local afetado. Nada. Ainda esperei a voz de Sergio Mallandro ou de um Luciano Huck interromper aquela pegadinha dolorosa. Procurei as câmeras escondidas. Nada. Já com a mão na maçaneta, ela permanecia sorrindo de forma congelada. 
-Combinados para sábado? 10h?
-A senhora pode me dar uma nota fiscal?
-Ah, meu filho! Não trouxe talão. Posso dar essa nota depois?
-Ok. 
Aquele tratamento não podia ser sério. Decidi manter a encenação até que conseguisse falar com Dr.Raphael, o nosso dentista original.
No dia seguinte, pela manhã, o nosso dentista estava à disposição. Tirou a radiografia, constatou que não havia nenhuma necessidade de canal e removeu o esdrúxulo curativo. Não sem antes colher informações sobre a autora de obra tão grosseira. Riu bastante com o ocorrido e lamentou minha inocência. Cobrou R$ 200,00 pelo que nossa Fernanda Montenegro capitalista havia avaliado em R$ 1000,00. Reconstituiu os dentes no espaço de uma hora.
Só restava recuperar o dinheiro pelo trabalho não executado de nossa dublê de profissional. 
Liguei para o consultório. Ela mesma atendeu. Sim, ela também era a recepcionista do local. Expliquei que minha filha não havia se sentido à vontade com o recurso que ela havia usado e fui obrigado a procurar outro profissional. Queria o adiantamento de volta.
-Meu filho, não posso devolver o que já contabilizei! - disse aos berros. 
-E como pode contabilizar um trabalho que não realizou? 
-É falta de ética. Vocês deveriam ter esperado até o dia da minha consulta.  Eu iria cumprir a minha parte. Não posso devolver. 
-Falta de ética não é cobrar pelo que não se faz?
-Se quisessem o dinheiro, deveriam ter me advertido com 72 horas de antecedência. 
-Minha senhora, nosso contato foi ontem.
-Está vendo? Até o tempo está contra você. Não se debata. Apenas aceite. Não vou devolver.
-A senhora pode me dar a nota fiscal que ficou devendo?
-Eu dei a nota para o senhor ontem. 
-Claro que não. A senhora prometeu no próximo atendimento. 
-Está duvidando de minha palavra? Sou uma idosa. Tenho mais de quarenta anos na área. O senhor é um canalha por duvidar de minha honradez. Um canalha, entendeu?
Ela bateu o telefone. Eu fiquei me achando o mais ingênuo dos exemplares humanos. 
Cinco semanas depois, na hora do almoço,  enquanto estava no escritório, a tv ligada mostrava a imagem de uma mulher algemada. Tentava cobrir a cabeça ao se colocar diante das câmeras. A foto do telejornal, exibida no canto superior direito do televisor, mostrava a cara de nossa experiente dentista. A expressão "exercício ilegal da profissão" preenchia a parte mais baixa da tela. Tinha quarenta anos de experiência no artigo 282.

(André Lima)

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